COLTRANE BALLADS
(Carlos Felipe Moisés, Noite
Nula, Nankin, 2008)
Crítica
de Vivian Schlesinger
“Coltrane Ballads” é um poema
que usa a linguagem musical para demonstrar o vínculo entre pai e filho, a
tentativa “de criar um pendant verbal... lidando com as palavras como massas
sonoras, não só como conteúdos,” segundo o próprio autor, em entrevista a
Ricardo Silvestrin. É através da relação
do sujeito poético com a música de John Coltrane que o leitor descobre a perda
do filho, a dor insuportável que isso causa ao pai, e a remota esperança do
reencontro. Dividido em quatro partes
desiguais, numeradas, o poema começa, no primeiro segmento, com o registro dos
tons e instrumentos ao fundo (“sax tenor... agudos/ suaves..). Em tom intimista, entra a voz poética em
primeira pessoa, a revelar que essa música ficou no passado, na memória, “Desde
então sei/ de cor. Nunca mais ouvi mas/
sou capaz de cantarolar nota/ por nota...”
A tristeza contida prenuncia-se mediante esse “então.”
O segundo segmento tem um tom
mais prosaico. É um diálogo entre pai e
filho (“Emprestou né pai?”), sobre uma conversa do filho com um amigo. Ao dar voz ao pai e ao filho, o poeta dá
concretude ao sujeito do poema e a seu interlocutor, e os aproxima do
leitor. A música de Coltrane os une: o pai dá ao filho o CD (ou vinil?), “Pode
ficar : é seu./ Você/ ouve melhor do que eu”./
Tem-se a sensação de intimidade partilhada com o leitor. A angústia, vagamente sugerida no segmento
anterior, intensifica-se e começa a tomar forma. Apesar da emoção contida, as quebras nos
versos, e o deslocamento lateral da palavra “Você” referindo-se ao filho, lembram
uma pausa por embargo na voz poética, um nó na garganta. O segmento, que começa distante, no tempo
passado (“Um dia ele ouviu...”) termina no presente (“Pode ficar: é seu./ Você/
ouve melhor do que eu”). O leitor sabe
que está diante de algo muito grande, maior do que o sujeito do poema, mas
ainda não é possível definir-se a origem dessa angústia. As rimas, raras, dão leveza aos versos (me
viu, sorriu; me deu, é seu, que eu).
Nada prepara o leitor para o que vem a seguir.
É avassalador: “a casa toda desmorona,/”. No terceiro segmento a voz poética se
descontrola. Surge uma torrente de metáforas
contundentes em numerosos versos que se deslocam no papel, ora para a direita,
ora para a esquerda, tal qual águas que se extravasam repentinamente de uma
represa. É o desespero em palavras. Em contraste com o segmento anterior, nada há
de prosaico aqui. A referência ao nome
de duas faixas do Ballads, “Say it, Over and over again,” e “You don’t know
what love is,” também são pistas do que o sujeito poético ouve: repita outra e outra vez, tente, tente, e a
voz na noite nula que diz, quase em tom acusatório, você não sabe o que é o
amor.
Nesse segmento estabelece-se a
filiação do poema ao livro, Noite Nula,
no verso “...no meio da noite/ nula uma voz reboa...”. É no desespero, na inutilidade de lutar
contra o esmagamento, “Tentei, tentei, continuo a tentar...” que esta voz se rende, “...não ouço/ mais
nada.” Todos os poemas do livro, afinal,
dão vida a pessoas mortas, uns com mais, outros com menos carga emocional, mas
todos com a marca da memória, de impedir que sejam engolidos pela noite nula. Noite nula é noite de perda: na noite nula,
algo se desintegra. Carlos Felipe
Moisés não poupa o leitor, explora todas as possibilidades, por crer que nenhum
fato seja indizível.
No último segmento há a volta à
contenção através da disciplina da música e da economia de versos. Nada resta se não sonhar com o reencontro:
“...um dia/ vamos ouvir tudo de novo/ lado a lado”. A repetição dos dois agudos, suaves
sequências, “ouvidos” no começo, fazem o papel que fariam no jazz, de retomar
alguns acordes, mas não fazer tudo igual, criando um novo nuance com os mesmos
elementos. Dá à perda uma nova dimensão,
a da eternidade que separa este pai de seu filho. É justamente ao sonhar com o dia do
reencontro que o sujeito do poema faz lembrar que esse dia não chegará enquanto
ele viver. O leitor sente a dor deste
pai. Na melhor tradição pessoana, Carlos
Felipe Moisés finge:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve
Mas só a que eles não têm.
(Fernando Pessoa, Autopsicografia)
Adorei a crítica que é mais uma aula do que uma crítica e nos ajuda a ler a dor do poeta e compartilha-la com as nossas.
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